terça-feira, 21 de janeiro de 2014

A culpa é das vítimas - por Pádua Fernandes (Blog do Nassif)

"Será que tem culpa o Estado dos presos se amotinarem, de desejar fugir, de desejar matar todos que se coloquem entre eles e a rua? A culpa foi das vítimas, que iniciaram a rebelião [...]. Enquanto na China são mortos 30 mil condenados de maior periculosidade por ano, enquanto em alguns países da América são mortos ou lançados na selva um grande número de presos irrecuperáveis, não se pode reclamar do Brasil, onde eles vivem protegidos da chuva e das necessidades alimentares, mantidos pelo Estado com dificuldades orçamentárias, que lhes dão privilégio em relação aos pobres pais de família de salário mínimo." (Desembargador Pinheiro Franco, do Tribunal de Justiça de São Paulo, ao negar pedido de indenização de Ionice Urbano da Luz, mãe de um dos presos mortos no massacre. Referência: FERREIRA, Lúcia Moraes Abreu, MACHADO, Marta Rodriguez de Assis, MACHADO, Maíra Rocha. Massacre do Carandiru: Vinte anos sem responsabilização. Novos Estudos, 94, novembro 2012, p. 5-29.

O estudo que cito acima é brilhante, e mostra bem como a polícia e o ministério público, por razões que ainda não foram estudadas, foram incapazes de investigar tanto o governador quanto o secretário de segurança da época no Massacre do Carandiru, e como o poder judiciário falhou seguidamente ao longo dos processos.

A passagem citada é a própria epígrafe desse artigo, em que se chega à formulação lapidar: "a culpa é das vítimas". Todo o resto da fala não faz muito sentido e é necessário, de fato, ter a sensibilidade social de um magistrado típico para pensar que os encarcerados no Brasil são pessoas privilegiadas. A escolha da China como padrão de comparação também comove, tendo em vista os parâmetros democráticos com que se poderia comparar o Brasil. Porém, na sintética frase, temos uma síntese da polícia lato sensu, na qual se pode incluir o judiciário.

Lembro agora de um vídeo sobre Foucault, Michel Foucault par lui-même (Michel Foucault por ele mesmo), de Philippe Calderon. Não é ruim. A partir dos 27 minutos, perguntam para Foucault qual é a função de um juiz na sociedade; responde: "A que ele serve? Se eu fosse maldoso, coisa que não sou, mas o direi de qualquer forma, ele serve, no fundo, para permitir à polícia funcionar. [...] A justiça está a serviço da polícia; historicamente e, de fato, institucionalmente."

A partir dos vinte oito minutos, Foucault fala do "discurso" que o juiz quer obter do réu: que este declare o juiz inocente...

O que é apenas um ponto da questão. Pois não seria melhor que a parte nem mesmo pudesse chegar ao juiz? Ou, melhor, que nem mesmo houvesse processo? Ou que o processo não terminasse? Ou terminasse tarde demais? A criatividade da inefetividade do processo, ou melhor, da efetividade do processo para a inefetividade da justiça (não o judiciário, veja bem) vai além do que o filósofo francês ousou pensar.

Se a culpa é das vítimas, por que pensar, conjecturo, que haveria assassinos? Não seriam necessários... Um corpo destroçado com todos os dentes arrancados seria um exemplo, pois, de suicídio. Tendo em vista que trato tanto de temas de justiça de transição, poderia lembrar de execuções pela polícia ou pelas forças armadas disfarçados em "suicídios", como foram os casos de Manoel Fiel Filho,Olavo Hanssen, Vladimir Herzog, apenas para mencionar aqueles sobre que escrevi neste blogue.

Não é necessário fazer esse exercício de voltar ao passado recente, porém, para verificar exemplos de pessoas, para usar a palavra de Artaud, "suicidadas"; desta vez, porém, não por fazer oposição política. Menciono o protesto relativo à morte do adolescente Kaique Augusto Batista dos Santos, no último dia 17, em que se fez ver este cartaz: "Desde 64 quem é torturado e assassinado foi suicidado".

O rapaz de 17 anos foi encontrado dia 11 deste mês; ele estava em uma "balada" para homossexuais no centro de São Paulo; descubro que, por causa da violência, formaram-se "famílias LBGT" para se protegerem de crimes de ódio.

Exagero? Os crimes de motivação homofóbica no Brasil têm crescido segundo o Relatório sobre violência homofóbica no Brasil: Ano 2012, da Secretaria de Direitos Humanos do governo federal. Entre 2011 e 2012, houve um aumento de 46,6% de vítimas, e de 166,09% de denúncias:

 

Ele se separou dos amigos para ir ao metrô República; provavelmente, no caminho foi atacado.

A morte foi registrada como suicídio, o que aumentou a revolta causada pela morte; mesmo o governo federal, via Secretaria de Direitos Humanos, afirmou que "As circunstâncias do episódio e as condições do corpo da vítima, segundo relatos dos familiares, indicam que se trata de mais um crime de ódio e intolerância motivado por homofobia."

No fim do ano passado, com apoio dos setores governistas, o projeto de lei PLC-22, que tipificaria o crime de homofobia, equiparando-o ao de racismo, foi arquivado. O deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ) escreveu um interessante texto relacionando a morte do adolescente com esse crime, comparando a situação do Brasil com a do Chile, onde crime semelhante levou a uma lei contra a homofobia - e num governo de direita, de um ex-aliado de Pinochet. O deputado escreve que as mesmas forças teocráticas (ou seja, antidemocráticas) que enterraram o projeto haviam feito o governo cancelar o programa Escola sem Homofobia e, ademais, alimentam o discurso de ódio que legitima esses crimes.

Creio que muitos dos que se levantaram contra o projeto não quisessem a escola sem homofobia porque preferem uma escola sem homossexuais... O que leva a outra questão. O discurso do suicídio talvez seja alimentado, além de uma eventual tendência oficial a subestimar os crimes violentos e melhorar as estatísticas de segurança, por um imaginário social de extermínio. Um desejo de que estas pessoas não mais existam. Porém, em vez de enfrentar as raízes disso, para tranquilizar a consciência, nada melhor do que pensar que elas morreriam de qualquer forma em razão de seu estilo de vida, que homossexualidade é igual a suicídio...

Lembro agora de outro episódio, que mostra a importância da defesa da laicidade do Estado para a democracia: em setembro de 2013, duas moças, Joana Palhares e Yunka Mihura, beijaram-se em praça pública em São Sebastião enquanto o pastor-deputado federal Marcos Feliciano dirigia um culto religioso; ele chamou a Guarda Civil Metropolitana para prendê-las. Palhares declarou: "Nunca imaginei que seria agredida, violentada, algemada e presa por beijar uma mulher em público." Elas foram tratadas como culpadas, e não os que violam a laicidade.

Torna-se então mais compreensível o ridículo discurso dos que afirmam que há uma "ditadura gay" no Brasil, ou um "gayzismo" perigoso que corrompe a sociedade. Ainda mais neste governo federal, que, como os outros, deixou de lado esta minoria na repartição do poder.

Não são apenas os idiotas e os loucos que acham que está no poder, e ditatorialmente, um grupo que é perseguido, vilipendiado e morto nas ruas, e derrotado (na simples busca da igualdade) no congresso nacional e no poder executivo. Faltam os desonestos: aqueles que estão incomodados com o fato de que os homossexuais, embora sofram essa violência, ainda existam, e repetirão esse mantra, insatisfeitos com suas fantasias de extermínio não se realizarem.

Enfim, a culpa é das vítimas, por existirem.

Falando em extermínio, imagine-se outro quadro, um vasto afresco composto de diversas pinceladas, que retrata grupos...

- que esperam a atrasadíssima demarcação de suas terras, que deveria ter sido terminada em 1993 (artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias); 
- que, em certa região do país, apresentam um alto índice de suicídio, equivalente a um genocídio silencioso; 
- que estão sofrendo uma aliança das grandes empresas beneficiadas pelo orçamento federal com o poder executivo; 
- que têm sido ameaçados com uma vasta ofensiva legislativa contra si, segundo o levantamento de Artionka Capiberibe e Oiara Bonilla; 
- que seriam amparados tanto pelo direito constitucional quanto pelo direito internacional, mas o judiciário (com o STF à frente) resolveu rasgar essas normas em nome da "ordem" e da "economia", ressuscitando doutrinas da ditadura militar; 
- que sejam assediados pela polícia em desrespeito às garantias constitucionais; 
- contra que se fez um leilão ao qual, seja por deboche ou mau gosto,se deu o nome de "leilão da resistência", embora sejam estes povos que estejam sob ataque e estejam resistindo; 
- que o governo atual tenha emperrado o reconhecimento do direito sobre suas terras; 
- que sofreu genocídio também durante a ditadura militar, a tal ponto que, de alguns, sobraram 2% da população; 
que seus rios estejam sendo envenenados por aqueles que desejam expulsá-los; 
- que o governo federal tenha criado uma "guarda pretoriana" que protege os empreendimentos de invasão e/ou destruição de suas terras...
... mas interrompo a lista, não por falta de tinta para novas pinceladas, mas porque essa pintura é feita com sangue e o seu peso faria o afresco derrubar todo o prédio.

Diante dessa situação, que é, em geral, a dos povos indígenas no Brasil, os porta-vozes dos grandes negócios, muito bem acomodados na grande imprensa, repetem diuturnamente certos absurdos: o de que a melhor coisa é ser índio, pois assim se tem "segurança fundiária" (!); ou ode que o Brasil vive uma "ditadura antropológica"; que os laudos antropológicos são produzidos por alucinações do Santo Daime; que os índios têm terras demais; ou o absurdo de a tevê mais vista no Brasil manipular a edição para que membro do ISA pareça dizer o contrário do que falou; ou o fato de os índios continuarem a ser o que são seja chamado de "reetnização" por quem não aceita a ideia de que os índios não acabaram e quer fazer crer que, se hoje eles reivindicam seus modos de vida, é porque há gente muito oportunista que deseja aumentar as próprias chances de ser baleada por empresas de segurança...

Por sinal, se tanto os antropólogos, aos índios e aos homossexuais são acusados de "ditadura" por esses porta-vozes, a finalidade é justamente a de disfarçar quem está realmente exercendo um poder autoritário e promovendo os preconceitos.

Por que toda essa gigantesca campanha de desinformação e violência é necessária, com apoio de tantos poderes oficiais e oficiosos? Porque os índios resistem e, para essas vozes contrárias aos direitos humanos, são culpados de existir, de o secular genocídio no Brasil não ter se cumprido de todo. Quando são acusados de atrapalharem o progresso, o desenvolvimento, de serem "preguiçosos", de quererem manter suas próprias terras etc., estão sendo acusados, na verdade, de serem o que são.

E contra esse modo de vida, o mínimo que aqueles poderes cúmplices desejam é o etnocídio. Eduardo Viveiros de Castro, nesta recente conferência sobre a destruição do mundo, o antropólogo diz que estamos em uma espécie de "ofensiva final contra os povos indígenas": http://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/os-indios-sao-especialistas-em-fim-do-mundo-diz-o-antropologo-eduardo-viveiros-de-castro  Para tanto, temos este novo "colonialismo", que, à diferença do antigo, é interno e, à semelhança dos velhos tempos coloniais, usa o racismo em prol dos interesses do grande capital.

O ecocídio, claro, faz parte desse quadro de ruínas; a propósito, sugiro, novamente, a leitura da primeira e da segunda partes da lista de leituras sobre o ecocídio de Belo Monte, que Idelber Avelar comentou.

Nesse sentido, não há nada mais velho do que os avanços ilegais do que se chama de agronegócio. Velhos também os ataques contra os homossexuais. O que pode ser novo é a reação, a resistência.

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