domingo, 28 de julho de 2013

Debate com Wanderley Guilherme dos Santos sobre os protestos

O futuro do atual levante niilista – por Wanderley Guilherme dos Santos (O Cafezinho)

Regras democráticas e direitos constitucionais não transferem suas virtudes às ações que os reivindicam como garantia. Máfias e cartéis econômicos também são organizações voluntárias e nem por isso o que perpetram encontra refúgio na teoria democrática ou em dispositivos da Constituição. Esgueirar-se entre névoas para assaltar pessoas ou residências não ilustra nenhum direito de ir e vir, assim como sitiar pessoas físicas ou jurídicas em pleno gozo de prerrogativas civis, políticas e sociais, ofendendo-as sistematicamente, nem de longe significa usufruir dos direitos de agrupamento e expressão. Parte dos rapazes e moças que atende ao chamamento niilista confunde conceitos, parte exaure a libido romântica na entrega dos corpos ao martírio dos jatos de pimenta, parte acredita que está escrevendo portentoso capítulo revolucionário. São estes os subconjuntos da boa fé mobilizada. Destinados à frustração adulta.

É falsa a sugestão de que se aproximam de uma democracia direta ou ateniense da idade clássica. Essa é a versão de jornalistas semi-cultos que ignoram como funcionaria uma democracia direta e que crêem na versão popularesca de que Atenas era governada pelo Ágora – uma espécie de Largo da Candelária repleto de mascarados e encapuzados trajando luto. Os Ágoras só tratavam de assuntos locais de cada uma das dez tribos atenienses. Em outras três instituições eram resolvidos os assuntos gerais da cidade, entre elas a Pnyx, que acolhia os primeiros seis mil atenienses homens que lá chegassem. Ali falava quem desejasse, apresentassem as propostas que bem houvessem e votos eram tomados. Os nomes dos proponentes, porém, ficavam registrados e um conselho posterior avaliava se o que foi aprovado fez bem ou mal à cidade. Se mal, seu proponente original era julgado, podendo ser condenado ao confisco de bens, exílio ou morte. A idéia de democracia direta como entrudo, confete e um cheirinho de loló é criação de analistas brasileiros.

As cicatrizes que conquistarem nos embates que buscam não semearão, metaforicamente, sequer a recompensa de despertar o País para a luta contra uma ditadura (pois inexistente), apesar de derrotados, torturados e mortos – reconhecimento recebido pelos jovens da rebelião armada da década de 70. Estão esses moços de atual boa fé, ao contrário, alimentando o monstro do fanatismo e da intolerância e ninguém os aplaudirá, no futuro, pelo ódio que agora cultivam, menos ainda pelas ruínas que conseguirem fabricar. Muito provavelmente buscarão esconder, em décadas vindouras, este presente que será o passado de que disporão. Arrependidos muitos, como vários dos participantes do maio de 68, francês, cuja inconsequência histórica (e volta dos conservadores) é discretamente omitida nos panegíricos.

Revolução? – Esqueçam. Das idéias, táticas e projetos que difundem não surgirá uma, uma só, instituição política decente, democrática ou justa. Não é essa a raiz dessa energia que os velhotes têm medo de contrariar. É uma enorme torrente de energia, sem dúvida, mas é destrutiva tão somente. E mais: não deseja, expressamente, construir nada. Sob cartolinas e vocalizações caricaturais não se abrigam senão balbucios, gagueira argumentativa e proclamações irracionais. Os cérebros do niilismo juvenil sabem que não passam de peões, certamente alguns muitíssimo bem pagos, talvez em casa, a atrair bispos, cavalos e torres para jornadas de maior fôlego. Afinal, os principais operadores da ordem que se presumem capazes de substituir são seus pais e avós. Em cujas mansões se escondem, no Leblon e nos Jardins.


Os problemas inerentes à democracia representativa - por ex-aluno do Wanderley (Blog do Nassif)

A análise de Wanderley G.Santos é instigante. Mas, a meu ver, desconsidera disfuncionalidades crônicas inerentes ao funcionamento da democracia representativa - problemas reconhecidos por vários teóricos da Ciência Política.

Em primeiro lugar: o usufruto das liberdades políticas é desigual para diferentes classes e grupos sociais, devido à desigualdade na distribuição dos recursos (capital financeiro, capital simbólico, tempo livre, acesso aos meios de comunicação).

Num país como o Brasil, onde metade da população economicamente ativa recebe até dois salários mínimos, esta disparidade é ainda mais aguda.

Em segundo lugar, a cristalização das burocracias estatais e partidárias tende a sufocar o encaminhamento político das reivindicações populares.

Forma-se um grupo relativamente homogêneo de políticos profissionais, socialmente muito vinculados entre si - parentes, compadres, amigos e colegas - unidos, para além de qualquer fronteira partidária, pelo interesse comum de assegurar suas carreiras, posições e privilégios.

Esses personagens vivem cada vez menos “para” a política, e mais “da” política. Mantêm relações incestuosas uns com os outros e com diversos grupos de interesses econômicos.

A corrupção, a troca de favores, o financiamento privado milionário de campanhas, a chantagem através da mídia, etc., são alguns dos muitos mecanismos que o grande capital utiliza para definir a agenda política segundo seus próprios interesses, e influenciar as ações dos governos. Decisões políticas essenciais são tomadas em negociações de bastidores envolvendo as burocracias estatais, diferentes instâncias de poder, e os grupos de interesse dominantes na sociedade.

Muitas vezes, as reivindicações populares são rejeitadas com a utilização de alegações de natureza técnica ou “orçamentária” que não são postas em discussão. Foi o caso dos famosos "20 centavos" do aumento das passagens de ônibus em S. Paulo.

Se um prefeito ou governador tenta confrontar grandes grupos de interesse, estes têm poder para sabotar e até inviabilizar o seu mandato. Das brigas intermináveis na Justiça aos assassinatos de reputação na mídia, dos locautes e operações tartaruga não declarados ao bloqueio nas câmaras legislativas, chega-se à paralisia de governos, quando não ao caos puro e simples. Revejam a trajetória de Luíza Erundina quando tentou implantar o passe livre em São Paulo!

Os políticos fecham acordos e compromissos de bastidores em todos os níveis, sem consultar seus eleitores. São obrigados a fazê-lo mesmo quando queiram pôr em prática um programa de esquerda. É o custo da famosa "governabilidade". 

Não surpreende que os jovens rebelados pelas ruas tenham gritado, insistentemente, a respeito dos partidos e dos políticos "tradicionais": "Não nos representam!"

Mas é infinitamente mais fácil denunciar os vícios do poder estabelecido que construir alternativas factíveis a esse poder. Wanderley G.Santos aponta, com razão, a superficialidade, ignorância, arrogância e despreocupação com a realidade dos jovens manifestantes, muito mais propensos a derrubar governadores (especialmente aqueles que compõem a problemática "base aliada" do PT, e não por acaso) que a definir o que querem pôr no lugar. 

Com o advento da Internet, pode ser que tenhamos nas mãos novas ferramentas capazes de ajudar numa reinvenção da democracia. Pode ser que estejamos diante, efetivamente, de algo novo, sem precedentes na história do fazer político.

Com a Internet, a circulação de informação, o debate, o compartilhamento de imagens em tempo real, os "vazamentos" etc., podem minar o poder das mídias tradicionais, clássicas aliadas dos grandes grupos de interesse. A Internet permite violar pactos de silêncio, expondo negociatas, denunciando malfeitos e omissões; permite divulgar experiências ocorridas em outros países, abrir espaços de discussão virtual, compartilhar ideias etc. Permite também convocar manifestações de rua massivas e rápidas.

É bem verdade que muita mentira, muito lixo, muita manipulação, também circula na Internet.

Trava-se aí uma verdadeira batalha de informação.

Mas é indiscutível que a  Internet viabiliza novas e inéditas formas de mobilização da cidadania.

Com isso, nasceu o sonho da "democracia 2.0", na qual os atuais sistemas de representação política seriam complementados, controlados, oxigenados pela participação direta dos cidadãos.

No Brasil, esse sonho esbarra nas disparidades na distribuição de renda, riqueza e capital simbólico. Eleitores muito pobres não têm acesso às ferramentas da Informática nem a todos os termos de debates que interessam a seus destinos.

Isso limita a democracia participativa, mas não deve desanimar-nos de viabilizá-la.

Os movimentos de rua recentes são majoritariamente constituídos pelas camadas médias letradas e informatizadas da população.

Bandeiras populares e inclusivas têm sido abraçadas pelos manifestantes, mas ainda é cedo para saber se eles - quantos deles - estarão realmente dispostos a pagar o preço da sua implantação no mundo real.

Além do custo cifrável em impostos e incertezas, o fazer político é muito mais trabalhoso, cansativo e exigente que gritar "fora isso" e "abaixo aquilo". Urrar de indignação em passeatas é muito mais divertido que participar de reunião de condomínio, sindicato ou conselho popular. A participação cotidiana nos assuntos da pólis, mesmo arejada e democratizada, terá de disputar corações e mentes com os lazeres privados e o ethos individualista do capitalismo. A conferir.


Ao mestre Wanderley Guilherme dos Santos - por Luis Nassif (Blog do Nassif)

Nesses tempos de turbulência, de profundo corte na política, na mídia e nas formas de organização, mais que nunca é fundamental o papel dos cientistas políticos. E, dentre eles, o mais ilustre, Wanderley Guilherme dos Santos.

No entanto, seu artigo “O futuro do atual levante niilista” permite reparos. Alguns muito bem colocados no artigo “Os problemas inerentes à democracia representativa” por alguém que assina como “ex-aluno de Wanderley” e se mostra à altura do mestre.

No seu artigo, Wanderley investe contra as manifestações de rua, como se constituíssem em um caos articulado (perdão pelo paradoxo) contra a ordem democrática tradicional. “Sob cartolinas e vocalizações caricaturais não se abrigam senão balbucios, gagueira argumentativa e proclamações irracionais”. Ironiza os “semicultos” que pretendem enxergar um novo Ágora ateniense. E garante que “das ideias, táticas e projetos que difundem não surgirá uma, uma só, instituição política decente, democrática ou justa”.

Deles, claro que não. De Wanderley, certamente que sim, assim que aceitar o ativismo online como um dado da realidade, irreversível, e o caos atual como a desordem que precede a nova ordem, uma realidade que surgiu com o advento das novas tecnologias e com as quais se terá que conviver, disciplinar e institucionalizar. E esse processo civilizatório será pavimentado pelo conhecimento, sabedoria e engenho dos verdadeiramente cultos, como Wanderley.

Civilizando as demandas políticas

Recentemente, o mestre participou de um Brasilianas defendendo a atual pulverização partidária. Ensinou ele que, graças a essa multiplicidade de partidos, nos mais distantes rincões a selvageria política é canalizada para formas institucionais e civilizadas de luta política.

Esse mesmo processo civilizatório precisa ser aplicado ao universo amplo das redes sociais, para a constituição da futura democracia digital, criando um novo modelo institucional que dê conta do fenômeno.

Onde Wanderley enxerga cartolinas e palavras balbuciantes, existe o caos que precede a nova ordem, com os seguintes elementos:

1. A mídia como elemento de pressão sobre as políticas públicas.

Na democracia representativa, os meios de comunicação se constituem no instrumento mais eficiente de influenciar políticas econômicas. Os grandes grupos midiáticos sempre responderam às demandas dos grandes anunciantes e grandes grupos econômicos, estabelecendo uma não isonomia com outros setores.

Por exemplo, dois dos principais preços da economia – câmbio e juros – são manipulados por meia dúzia de consultorias influenciando dois ou três jornais.

No passado, foi o poder da mídia (em um país quase totalmente de analfabetos) que legitimou os gastos públicos das políticas cafeeiras e demonizou gastos em outras regiões.

O simples fato do modelo convencional ter implodido muda o cenário de políticas públicas – gostando-se ou não do novo modelo.

2. As instituições capilares como meio de arregimentação política

Os principais agentes da política brasileira são os partidos tradicionais, sindicatos, igrejas e interesses difusos influenciados pela mídia. Todos com capilaridade garantindo massa crítica de votos.

Com as redes sociais, muda o modelo. É importante notar que grande parte da visibilidade conquistada por movimentos sociais deve-se ao uso pioneiro da Internet.

3. O novo Ágora

Wanderley não gostou da comparação das redes sociais com o Ágora grego. Mostrou que o Ágora grego legislava sobre pontos muitos específicos das cidades gregas e obedecia a regras claras de participação.

Não é esse o ponto em comum das redes sociais com o Ágora, mas o fato de que toda discussão pública se dá dentro de uma mesma plataforma tecnológica.

Quando éramos jovens, fora da mídia o campo de difusão do discurso eram as assembleias e os mimeógrafos. Agora, todos – movimentos sociais, militantes de esquerda e direita, etc. – atuam sobre a mesma plataforma tecnológica. Um comentário bem posto de um blog é capaz de derrubar a matéria do maior jornal brasileiro pelo simples efeito viral. Há implicações radicais sobre o jogo de pressões democrático.

4. A rapidez do ativismo digital e o ritmo da democracia.

Democracias embutem processos inevitavelmente lentos, seja de incorporação de novos atores ou aceitação de novos conceitos. O ativismo digital trouxe um componente de urgência incompatível com os ritos democráticos tradicionais. Não se trata de gostar ou não: são dados da realidade. O desafio consistirá em aceitar a nova realidade e debruçar-se sobre as formas capazes de dar organicidade e disciplina a essas demandas.

A democracia digital

No modelo convencional, partidos políticos, sindicatos, associações são  dominados por militantes com maior disponibilidade de tempo e vontade para participar. E a cooptação ocorre a partir de reuniões presenciais, assembleias que garantem o tiro de partida para os passos seguintes, de conquista do eleitorado e da hegemonia do setor.

Agora, a participação pode-se dar a partir da casa do sujeito. E não se trata de mera militância digital porque – e as manifestações estão aí para provar – seu poder de mobilização transcende o computador e a rede social.


Mais que isso: o mundo digital permitiu a ascensão de novos tipos de influência e de lideranças, perfis de redes sociais que jamais teriam visibilidade nos sistemas tradicionais de exposição.

Por outro lado, não é possível supor que o sistema de decisões seja submetido aos movimentos radicais de manada, que ganharam uma dinâmica inédita com as redes sociais. É necessária a montagem de uma nova estrutura institucional, com a definição das informações estruturadas necessárias para a tomada de consciência; o desenho de um novo sistema de instâncias decisórias; a rediscussão dos sistemas de freios e contrapesos.

Enfim, um desafio ciclópico, à altura de mestres como Wanderley Guilherme dos Santos, assim que ele perder a implicância com o mundo digital.


De Wanderley ao Nassif - por Wanderley Guilherme dos Santos (Blog do Nassif)


Prezado Nassif,

Além do artigo a que vc. generosamente se referiu, o suplemento Eu& do Valor Econômico traz outra participação minha (esta na imprensa tradicional) no debate sobre o momento.

Não tenho discutido os problemas dos sistemas representativos, suas deficiências arqui-conhecidas e apontadas em tom algo caricatural por alguém que me lisonjeia com a declaração de ex-aluno. Agradeço, mas anônimos não me sensibilizam.

Minhas observações sobre essas limitações estão em diversos trabalhos meus que não vêem ao caso citar. Também não me faz justiça a crítica de que implico com o mundo digital, vocês é que afirmam que o sistema representativo está superado – o que nego com argumentos, não xingamentos ou implicâncias.

Se me permite uma auto referência, foi em meio digital que levantei o tema de que o discurso de ódio que permeia parte considerável das manifestações e de mensagens digitais encontraram seu paradigma no espetáculo que foi o julgamento da Ação Penal 470, transmitido justamente por meios convencionais. Não discuto meios, mas as mensagens que são relevantes para o que estamos debatendo.

Reconheço e saúdo o fato de que esse novo universo já tem produzido fenômenos importantes para a sociedade democrática. Também estimo, como você, que exista um potencial de avanço civilizatório significativo embutido nessa ferramenta. Mas não estou tratando de promessas de futuro, de potencialidades, de aspectos positivos. Estou tratando de aspectos de hoje e negativos. Um discurso fascista é fascista seja qual for o meio em que esteja vazado. E tanto levo a sério o meio que tenho participado dele, afinal você está me fazendo restrições em virtude da minha participação.

Tenho repetido uma proposta para enriquecer a democracia representativa brasileira: tornar os analfabetos elegíveis nas mesmas condições dos alfabetizados. Ninguém se manifesta. Acho que consideram chocante, a esta altura do século XXI, internético, alguém se preocupar com os direitos políticos dos analfabetos. Enquanto isso, aguardo uma proposta, não promessas de futuro, de como aproveitar de forma produtiva a sensacional vantagem que é a velocidade de decisão por meio digital.

Abraço cordial,

Wanderley Guilherme

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