quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Os Juros Altos e a Cultura da Indexação – Uma Anomalia Brasileira - por Paulo Pereira Miguel

A pesar do otimismo corrente acerca das condições econômicas do país, há razões para preocupação. A boa performance da economia no contexto pós-crise financeira não deve obscurecer a permanência de problemas antigos, como a baixa poupança interna e os juros altos, que continuam limitando a capacidade de crescimento não inflacionário do país. A própria resposta à crise, na forma de um forte expansionismo fiscal e de crédito público, agravou algumas inconsistências do modelo econômico nacional.

Uma evidência recente de que o espaço de crescimento não inflacionário no Brasil ainda é pequeno está no comportamento da economia nos últimos dois anos. A expansão fiscal e monetária para combater o risco de recessão realizada em 2009 desencadeou uma significativa pressão inflacionária em um ambiente de crescimento apenas moderado. É decepcionante que o crescimento médio entre 2009 e 2011 tenha permanecido em torno de 3,5%, ao passo que a inflação no período tenha sido crescente: de 4,3% em 2009 para 5,9% em 2010 e, espera-se, algo próximo ao teto da meta, 6,5%, em 2011. Os evidentes riscos inflacionários também para 2012 em um contexto já evidente de perda de dinamismo reforçam esta impressão.

Mesmo na presença do maior choque positivo das últimas décadas nos nossos termos de troca (os preços das exportações em relação aos das importações), que reduziu sobremaneira a restrição externa ao crescimento da economia e abriu uma grande oportunidade para romper com algumas das amarras internas tradicionais, até o momento não há sinais claros de um esforço coerente neste sentido por parte da política econômica. A persistência da baixa poupança interna continua sendo um grande obstáculo, senão o principal, para a redução da taxa de juros e a aceleração não inflacionária do crescimento econômico. Quase dezessete anos após a estabilização monetária do Plano Real, o país permanece preso em um mau equilíbrio de baixa poupança, juros altos, câmbio valorizado e alta tendência à inflação.

Além disso, a configuração global atual – de desalavancagem financeira nos países centrais e crescimento global cada vez mais concentrado em alguns países emergentes, em particular na China – traz novos problemas e desafios que precisam ser compreendidos e enfrentados. Um dos principais elementos desta nova configuração global é a tendência a uma nova divisão de trabalho na economia mundial, que, se deixada à própria sorte, tende a reforçar a dependência do Brasil a preços cada vez mais elevados de exportações de produtos primários. O resultado ao longo do tempo seria a fragilização da economia, que estaria mais concentrada em produzir matérias-primas – ainda que com alto componente tecnológico, como no caso do agronegócio – e, portanto, vulnerável a uma reversão dos preços.

Tem-se então uma combinação preocupante: a persistente armadilha da baixa poupança, juros altos e câmbio valorizado, associada a um movimento externo que reforça a tendência à especialização em matérias-primas e à fragilização da indústria, com riscos para o futuro.

O objetivo deste trabalho é apontar alguns dos problemas com o modelo econômico atual. Com isso, espera-se ao menos chamar atenção para iniciativas que possam reduzir os obstáculos ao crescimento. Em primeiro lugar, discorre-se sobre as mudanças recentes nas condições de inserção externa da economia brasileira e sobre como a resposta da política econômica à crise de 2008 agravou algumas das inconsistências do modelo atual, para depois voltar à questão dos juros. Encerra-se com uma breve caracterização de alternativas para sair da armadilha dos juros altos.

O choque positivo nos termos de troca

Inicialmente, cabe considerar em maior detalhe a dimensão do ajuste externo realizado pela economia brasileira nos últimos anos. A globalização da década de 2000, a partir da emergência da China como protagonista de peso sistêmico na economia mundial, desencadeou mudanças profundas na dinâmica de inserção internacional dos países em desenvolvimento. A rápida industrialização chinesa alterou as condições de contorno em que se dava a integração de outras regiões periféricas, a partir do impacto altista de sua demanda nos preços das commodities. A mudança nas relações de troca da periferia que resultou da demanda do gigante chinês representou um rompimento, mesmo que provavelmente momentâneo, da histórica restrição externa ao crescimento dos países produtores de commodities.

De forma concomitante, parece ter havido uma redução dos custos da industrialização. Neste sentido, a demanda crescente por matérias-primas e o barateamento de bens industriais resultante da rápida construção de capacidade na China permitiria vislumbrar o que tem sido chamado de “generalização do desenvolvimento”. Um grupo grande de países em desenvolvimento passou a incorrer em persistentes saldos positivos em conta corrente de forma concomitante à aceleração do crescimento econômico. Estes, de certa forma, puderam pegar carona no trem chinês a partir da melhoria substancial nas suas relações de troca internacionais.

Os efeitos no Brasil são claros: o maior choque externo positivo das últimas décadas. Os termos de troca (preços de nossas exportações em relação aos preços das importações) cresceram 30% entre 2002 e 2008. Este choque, ao lado da expansão das exportações manufaturadas que se seguiu à desvalorização cambial e à recessão brasileira de 2002/2003, permitiu a eliminação da dívida externa pública em um espaço de poucos anos – antes da crise financeira de 2008 o país já se tornara um credor líquido em moeda estrangeira.

Ao contrário do que se poderia esperar inicialmente, os desdobramentos da crise financeira de 2008 reforçaram os ganhos nos termos de troca, na medida em que os países em desenvolvimento, especialmente a China, embarcaram em políticas internas expansionistas. Os preços de exportações de matérias-primas continuaram a subir e atingiram novos recordes, ao passo que as condições quase recessivas nas economias centrais reforçaram, junto com a máquina exportadora chinesa, a queda de preços dos bens manufaturados. Entre 2009 e 2011, os termos de troca brasileiros atingiram novas máximas, em muito suplantando o patamar pré-crise: em apenas dois anos, entre 2009 e meados de 2011, a alta nos termos de troca é similar à obtida nos seis anos que precederam a crise financeira de 2008.

Se o choque pré-crise, que a esta altura já pode ser considerado moderado, foi suficiente para permitir a eliminação da dívida externa, não se pode subestimar o impacto na economia brasileira do movimento recente. Trata-se de um “presente” da ordem de 2% do PIB anualmente.

O aumento dos preços e, em menor medida, a expansão das quantidades exportadas de produtos primários, é a razão dos persistentes saldos comerciais, da ordem de US$ 25 bilhões desde 2008. Do lado das exportações de manufaturados permanece uma virtual estagnação desde 2009, evidência de perda de competitividade industrial no contexto de valorização cambial e aumentos de custos internos. Mesmo assim, os saldos comerciais elevados têm contribuído para manter o déficit nas contas correntes em níveis ainda confortáveis (cerca de US$ 55 bilhões, 2,3% do PIB, esperados para 2011), a despeito da valorização do câmbio e do crescimento das despesas com serviços – lucros e dividendos, viagens internacionais, etc.

Mas um simples exercício mostra o potencial efeito de uma reversão destas condições: caso os preços das exportações estivessem no nível médio de 2000 a 2008, o país teria um déficit em conta corrente próximo a 4% do PIB (US$ 90 bilhões). Para manter o mesmo nível de crescimento, o país precisaria contar com uso ainda maior da poupança externa, o que não é desejável. É evidente que preços de exportações menores implicariam mudanças substanciais em outros parâmetros – provavelmente a entrada de capitais seria mais contida e a taxa de câmbio seria mais depreciada, de modo que o espaço para o uso de poupança externa talvez fosse inferior. Assim, o exercício não permite inferências quantitativas confiáveis, mas o ponto relevante permanece: em tal conjunto de condições e a despeito do ajuste já realizado nas contas externas, o espaço para o crescimento econômico seria menor, até porque haveria maior pressão inflacionária resultante do câmbio depreciado, obrigando o país, provavelmente, a realizar políticas internas mais restritivas.

Além dos termos de troca favoráveis, a maior atratividade dos países emergentes, no contexto de estagnação e juros quase nulos nas economias centrais, reforçou nos últimos dois anos o fluxo de entrada de capitais em busca de maior rentabilidade. A aceleração dos investimentos diretos para quase US$ 70 bilhões nos doze meses encerrados em julho de 2011, ainda que envolva operações disfarçadas de arbitragem de juros, é um salto em relação ao patamar dos anos anteriores, mais próximo a US$ 30 bilhões. O maior volume de emissões externas de dívida privada, em busca de custos baixos de financiamento, reforça os fluxos. Como lidar com este excedente internamente passou a ser um elemento crucial, e infelizmente ainda pouco explorado, da estratégia de política econômica do país, a não ser por algumas medidas ad hoc de controle da entrada de capitais.

A persistente tendência de valorização cambial dos últimos anos é resultado direto desta dinâmica externa sem precedentes nas décadas recentes, mas não apenas dela. É também fato que o mau equilíbrio econômico interno, com baixa poupança e juros altos, reforça a pressão de valorização cambial. São agravados os problemas de competitividade em amplos setores da indústria e cresce o risco de concentração de exportações em produtos primários. Esta concentração na pauta de comércio exterior não é um mal em si, pois é possível utilizar as vantagens comparativas nestes setores para diversificar a base produtiva da economia. Mas, para tanto, é necessário que a política econômica seja conduzida de modo compatível ao objetivo de diversificação, o que não é o caso brasileiro. Ao invés de minimizar a tendência à especialização causada pelo choque positivo nos termos de troca, a política econômica parece contribuir para exacerbá-la.

No nível mais conjuntural, a tendência de câmbio valorizado e juros altos foi reforçada desde 2009 pela resposta do governo à crise. Em um país com baixa taxa de poupança interna, juros altos e recorrente pressão de valorização cambial nociva à competitividade industrial, como é o caso do Brasil, a resposta correta à interrupção do crescimento econômico que se seguiu à crise teria sido menos expansão fiscal de custeio e mais afrouxamento monetário. Mas a escolha do governo foi realizar um afrouxamento fiscal e do crédito público (com foco questionável em alguns “campeões nacionais”), que se mostrou excessivo e longevo frente às condições objetivas em que operou a economia brasileira já a partir de meados de 2009. O resultado foi uma queda acentuada da poupança pública – e, por extensão, da poupança interna – e o rápido retorno das pressões inflacionárias, que já em 2010 inviabilizaram o cumprimento da meta de inflação e forçaram uma reversão quase total da redução de juros e de compulsórios bancários realizada em 2009.

A valorização cambial não é uma surpresa e, sim, um resultado direto desta configuração da política econômica, ainda mais no quadro atual de sobra de divisas. Além disso, a tentativa do Banco Central de minimizar a tendência de valorização por meio de intervenções esterilizadas, acumulando reservas internacionais, apenas reforça a inconsistência: ela impede que o excesso de demanda interna causado pelo expansionismo fiscal seja equilibrado com um maior uso de poupança externa e leva a uma taxa de juros ainda maior para manter a inflação sob controle, em um círculo vicioso.

Tendo em vista que o choque positivo dos termos de troca é uma realidade, da qual o país precisa fazer bom uso, volta-se à questão da baixa poupança e dos juros altos como ponto focal para a ação da política econômica.

Os juros altos – anomalia brasileira

Uma configuração de política econômica que resulte em juros mais baixos e câmbio mais depreciado é desejável para viabilizar uma maior velocidade de crescimento, com inflação sob controle. Tal configuração também contribuiria para minimizar os potenciais impactos da alta dos termos de troca e da avalanche de capitais externos na economia, facilitando a diversificação produtiva e protegendo a competitividade industrial.

Mas é aí que aparece a principal anomalia do Brasil em comparação com as outras economias. Apesar da lenta tendência de queda desde o inicio do período de flutuação cambial, quase duas décadas após a estabilização do Plano Real a taxa de juros no Brasil permanece muito acima da média internacional. Os gastos anuais com juros da dívida pública atingiram 5,5% do PIB nos últimos doze meses, frente a uma média mundial pouco inferior a 2%. Em média, as despesas com juros desde o início do Plano Real foram de 6,5% do PIB. Deve ser motivo de espanto, senão de indignação, que quase duas décadas depois da estabilização monetária o país ainda conviva com diferencial de juros tão elevado, mesmo em comparação com numerosos países nem tão bem comportados.

Por mais que se tente justificar tal divergência a partir de elementos históricos do nosso passado de agressividade ao credor, confiscos e inflação alta, bem como por afirmações de que o problema estaria na política social que distorce os incentivos a poupar e numa atípica ansiedade do brasileiro em antecipar o consumo, ou mesmo na insuficiência de reformas e na indexação ainda remanescente, estas explicações são facilmente combatidas com contra-exemplos de países com problemas similares e juros mais baixos que os brasileiros.

Mesmo assim, nas próximas linhas tentamos elencar alguns dos fatores que nos parecem relevantes para explicar o fenômeno e oferecer alternativas para a busca de um novo equilíbrio na política econômica.

A baixa poupança

O Brasil tem uma taxa de poupança interna baixa para padrões internacionais, em especial quando comparada com países em estágio similar de desenvolvimento e renda per capita. Segundo o FMI, a taxa média de poupança dos países em desenvolvimento fica entre 30% e 35% do PIB, ante menos de 20% no caso brasileiro. O caso chinês, com poupança próxima a 50% do PIB, é extremo – é a maior taxa de poupança documentada, em especial para um país com proporções continentais e com baixa renda per capita. Em alguma medida, a alta poupança chinesa traz problemas de gestão econômica opostos aos dos brasileiros.

As explicações para a baixa poupança no Brasil são pouco consensuais. É comum considerar que o país tem uma alta propensão ao consumo, que seria, ao menos em parte, causada pelo acelerado aumento da cobertura das redes de proteção social após a Constituição de 1988, incluindo um sistema previdenciário particularmente generoso para padrões internacionais. É fato que o país gasta mais que a média internacional em previdência, especialmente em comparação com países de renda per capita similar, o que certamente contribui para a baixa poupança interna e merece reparos nos desequilíbrios mais evidentes, mas não parece plausível considerar o que seria uma especial ansiedade dos brasileiros como a explicação principal. Ao contrário, é muito difícil distinguir o peso que cada sociedade dá ao consumo presente e, mesmo que isso fosse possível, o efeito nos juros é altamente duvidoso. Os EUA têm uma das maiores taxas de consumo em relação ao PIB do mundo – 71% – e nem por isso sofrem com juros altos; muito ao contrário. Os países europeus, por sua vez, mantêm generosas redes de proteção social, mas muitos deles apresentam taxas de poupança interna superiores às dos EUA e do Brasil.

Ao mesmo tempo, o avanço civilizatório obtido no Brasil nas três últimas décadas com o aumento da cobertura das políticas sociais está na direção correta, sendo objeto de admiração em muitos outros países em desenvolvimento. Além disso, trata-se de uma conquista não passível de reversão acentuada nas condições políticas atuais. É evidente que ajustes são necessários, em especial na previdência, de modo a reconhecer a realidade demográfica do envelhecimento da população e eliminar flagrantes injustiças, como a do regime do funcionalismo público. Mas parece mais promissor, ao invés de considerar a suposta predileção ao consumo e as políticas sociais isoladamente, que, não obstante, devem ser aperfeiçoadas, refletir sobre os arranjos institucionais que dificultam ou favorecem a formação de poupança interna (e não apenas da poupança das famílias isoladamente).

A poupança interna responde à taxa de juros e ao próprio nível de atividade da economia. Em geral uma taxa de juros mais alta reduz o consumo e aumenta a propensão a poupar, contraindo o nível de atividade. Por outro lado, a poupança responde positivamente ao próprio nível de atividade, isto é, tal como na modelagem keynesiana, um maior nível de investimento e renda em geral está associado a um aumento da poupança.

Uma particularidade brasileira parece ser a baixa resposta da poupança interna ao nível de atividade, isto é, o aumento do investimento e da renda não tem sido nos últimos anos acompanhado pelo aumento da poupança. Na verdade, tem ocorrido o oposto: um aumento da taxa de investimentos está associado à redução da poupança interna e ao aumento nos déficits em conta corrente, fato recorrente na história do país. Entre 2004 e 2008, o investimento (somado à variação de estoques) cresceu de 14% para 17,5% do PIB (a preços de 2006), caindo para 15,3% do PIB em 2009 e voltando a subir para quase 18% do PIB em 2010. A poupança interna, por sua vez, oscilou entre 17% e 18,5% do PIB entre 2004 e 2008, caindo para 14,7% do PIB em 2009 e voltando a subir para 16,5% do PIB em 2010. Ou seja, toda a necessidade adicional de poupança para financiar o aumento da taxa de investimento foi satisfeita com o aumento do uso de poupança externa. De fato, o saldo em conta corrente variou quase 4% do PIB, de um superávit de 1,8% do PIB em 2004 para um déficit médio próximo a 2% do PIB entre 2009 e meados deste ano.

Não é claro o motivo deste comportamento. Certamente as políticas sociais são parte da explicação, mas merece destaque a voracidade arrecadatória do governo e o tamanho dos gastos públicos, como um todo, incluindo as despesas de juros, em relação ao PIB, sem que se obtenha aumento relevante nos investimentos do governo. Em alguns dos países emergentes que aceleraram a taxa de investimentos nos últimos dez anos, o aumento concomitante de poupança se deu internamente, e prioritariamente no setor corporativo.

No caso da China, por exemplo, os lucros retidos das empresas cresceram de 2% do PIB em 2002 para 10% do PIB em 2008. No Brasil, a existência de pesados tributos sobre o faturamento (tal como o PIS/Cofins) e a persistente inflação de custos – também derivada da indexação de preços administrados – talvez seja um fator impeditivo ao acúmulo do excedente econômico no setor corporativo com fins de investimento (infelizmente, não há dados desagregados para provar a hipótese).

É fato que o Brasil tributa muito mais do que a média dos países emergentes – a arrecadação atinge 35% do PIB, nível comparável a países com renda per capita muito acima da brasileira. A transferência destes recursos para o Estado, que tem menor propensão a poupar e a investir, tem um papel relevante para explicar a insensibilidade da poupança interna à expansão do investimento e da renda. Daí deriva uma recomendação clara de redução de tributos em cascata no bojo de uma reforma tributária, como forma de alavancar a poupança interna, em conjunto com reformas que reduzam a propensão do Estado a gastos sempre crescentes. Fica também a observação de que arranjos institucionais muitas vezes insuspeitos têm papel relevante para a determinação do equilíbrio macroeconômico.

A indexação da dívida pública e o peculiar arranjo institucional do mercado financeiro

Entre estes arranjos, outro que aparece como relevante é a indexação de parte da dívida pública à taxa Selic no overnight, por meio da Letras Financeiras do Tesouro (LFT), que contribui para reduzir a eficácia da política monetária. Trata-se de um título sem risco de mercado, isto é, o risco de perda de capital decorrente de oscilações nas taxas de juros (o chamado efeito riqueza), pois reter uma LFT na prática significa aplicar o dinheiro por um dia, na taxa de juros de cada dia, repetidamente até o vencimento. Apesar de representar atualmente apenas 35% do estoque de títulos públicos em poder do público, o uso da LFT reduz o efeito riqueza, importante canal de transmissão da política monetária para a demanda agregada. Mesmo a existência de títulos prefixados, saudada como um grande avanço na gestão da dívida pública, caminha a passos lentos: cerca de 30% da dívida é composta por estes instrumentos e, mesmo assim, o prazo médio dos títulos em poder do público é de apenas 21 meses, insuficiente para que a política monetária tenha grandes efeitos, a não ser por variações de juros de magnitudes vistas apenas antes da instauração do regime atual de flutuação cambial e metas de inflação. Portanto, a perda de eficácia da política monetária decorrente do uso da LFT e de papéis prefixados de curta duração no financiamento da dívida pública é importante e deve continuar sendo atacada, como tem sido o caso, por meio do programa de alongamento de prazos e de mudança dos indexadores perseguido pela Secretaria do Tesouro Nacional.

Mas não é este aspecto o principal a ser destacado. A existência da dívida indexada e prefixada de curto prazo explicita outro problema, de natureza mais institucional. O financiamento overnight da dívida pública e da maior parte dos ativos financeiros, onde a LFT é apenas a ponta do iceberg, é o ponto de origem da infra-estrutura institucional erguida desde os tempos da moeda indexada antes da estabilização do Plano Real, quando a questão da rolagem diária da dívida pública era crucial. Estes tempos foram superados, mas ainda sobrevive, sob nova roupagem, grande parte do arcabouço regulatório e da cultura da rolagem diária no overnight, que se dissemina para toda a indústria financeira e encurta os horizontes da poupança interna, tornando-a menos sensível à variação dos juros.

Este arranjo institucional, ainda que metamorfoseado no contexto do Brasil pós-estabilização, fica evidenciado na indústria de fundos, que se concentra em prover produtos de investimento, em sua maioria com liquidez diária, ao mesmo tempo em que aloca a maior parte da captação dos recursos de clientes em títulos indexados, como a LFT, ou de curta duração. De fato, do estoque total de LFT em poder do público, em janeiro de 2011, 59% eram detidos pelos fundos, que se transformaram nos últimos anos no principal veículo depositário da poupança financeira nacional.

Não se trata apenas de financiamento overnight dos títulos públicos, pois do lado dos bancos, emissores da maior parcela da dívida privada existente, na forma de CDB’s e operações compromissadas, o mesmo ocorre: parte relevante do passivo bancário tem liquidez diária ou quase diária (com correção baseada no CDI, a taxa relevante para o financiamento diário interbancário e que baliza a remuneração de grande parcela dos ativos financeiros). Apenas mais recentemente o uso de papéis mais longos começa a se fazer sentir nos bancos. Mesmo as debêntures, em geral emitidas por empresas não financeiras, com prazo de vencimento mais longo, carregam tipicamente uma indexação ao CDI – na prática encurtando o horizonte do risco de juros de mercado para um dia –, ou a índices de preços. O circuito se fecha com o poupador, que se recusa a pensar, por boas razões, fora dos moldes do CDI diário.

A cultura do CDI, favorecida pelos mecanismos que permitem, na prática, liquidez quase diária sem risco de mercado para a maior parte da poupança financeira, dificulta o alongamento de horizontes que levaria os poupadores – e o setor financeiro como agente intermediário – a privilegiar o financiamento de longo prazo da economia. Certamente há elementos culturais, em parte decorrentes do passado inflacionário, para esta realidade, mas é característica das instituições se perpetuarem e legitimarem sua própria existência, de modo que a herança não pode justificar a inação e a aceitação tácita de uma realidade pretensamente imutável.

A inflação inercial que vigorou no Brasil dos anos 1980 até o advento do Plano Real era uma especificidade local, cuidadosamente alimentada por anos de construção regulatória, que acabou por adquirir dinâmica diferente do que ocorria no resto do mundo. A indexação generalizada de preços e salários legitimava socialmente o processo, pois mantinha certa organização dos preços relativos, reduzindo o impacto da luta distributiva. Mas a institucionalização dos mecanismos de indexação aumentava a inércia inflacionária, tornando impossível estabilizar a moeda com ações convencionais. Apenas o engenho do Plano Real foi capaz de desmontar esses mecanismos, com o apoio da sociedade.

No mesmo espírito, merece consideração o peculiar arranjo institucional do mercado monetário brasileiro. Ao lado da indexação que ainda persiste nos preços, a institucionalidade do mercado financeiro local, baseada na cultura do overnight que se espalha por toda a indústria de fundos e do mercado financeiro em geral, contribui para restringir a eficácia da política monetária e perpetuar um diferencial de juros em relação ao resto do mundo maior que o necessário, sem prejuízo das razões objetivas tradicionais para tanto, como a baixa poupança interna.

A indexação de preços que remanesce

Desindexar é mais fácil em momentos de inflação baixa. Sempre haverá a dúvida se a indexação existe porque a inflação no Brasil ainda é alta ou o contrário. À luz de nosso passado, parece plausível considerar que qualquer desindexação só será viável conforme a inflação seja mantida próxima à meta por um longo período de tempo. Mesmo assim, é preciso ajudar a indexação a morrer, com inovações institucionais graduais. Como nada se fez nos últimos anos, agora é preciso correr atrás do prejuízo, sem afrontar contratos nem impor a vontade do governo ao setor privado.

Para que o processo de desindexação seja aceito pela sociedade ele deve ser resultado de uma agenda transparente e de médio prazo. O primeiro passo certamente é controlar a inflação, trazendo-a de volta ao centro da meta, 4,5%. O BC argumenta que não faz sentido forçar a convergência em 2011, tendo em vista o choque de preços de commodities a inércia da inflação carregada do ano anterior, o que é certo. Mas é preciso dar segurança de que ela ocorrerá em breve, pois do contrário qualquer esforço de desindexação carecerá de credibilidade. No médio prazo, um compromisso de redução gradual da meta de inflação ajudaria neste esforço, de preferência com o estabelecimento de uma meta de inflação de longo prazo, entre 3% e 4% ao ano.

Também é preciso atenção às questões setoriais. Os contratos de concessões de serviços públicos devem ser corrigidos, conforme sejam renovados, de acordo com planilhas de custo e rentabilidade, reduzindo o automatismo da reposição dos índices de preços. Além disso, o IGP é um péssimo indexador, com peso de 60% em preços no atacado, que sofrem impacto direto da taxa de câmbio e dos preços de commodities, reforçando a inércia da inflação. Este peso foi definido há décadas e não guarda nenhuma correlação com a estrutura atual da economia. O fim do uso do IGP e a indexação de contratos à evolução dos custos ou a uma meta de longo prazo do IPCA é uma possibilidade que merece consideração.

É preciso ter em mente que a indexação de preços importantes, como energia, pedágios, aluguéis e tarifas de serviços públicos em geral, afeta os custos das empresas, o que insere uma cultura indesejável de repasses, ainda mais no contexto de poupança baixa e crônica tendência inflacionária. Além da desindexação nestes moldes, uma agenda focada de desoneração tributária, especialmente dos incidentes sobre o faturamento das empresas, aliada a melhorias logísticas e à redução de custos de transação em geral, tornaria a economia brasileira mais flexível e menos sujeita a altas coordenadas de preços.

Alternativas para sair da armadilha

À luz do que foi discutido, há duas soluções possíveis para a inconsistência atual do modelo de juros altos. A primeira é aceitar que o desequilíbrio interno no mercado de bens e serviços seja reduzido com uma maior absorção de poupança externa, com inevitável valorização cambial adicional. Uma mudança na política de acumulação de reservas por parte do BC, na verdade sua interrupção, deixaria a taxa de câmbio se apreciar em montante suficiente para reduzir o descompasso entre oferta e demanda interna e reduzir a taxa de juros. O novo equilíbrio se daria com câmbio mais apreciado e juros mais baixos, mas com déficits externos em conta corrente crescentes, de modo a equilibrar a demanda doméstica à oferta.

No entanto, esta não é uma solução desejável, na medida em que contribuiria para fragilizar ainda mais a estrutura econômica brasileira, com perda de empregos ainda maiores na indústria de transformação e acentuada dependência de preços cada vez mais altos para as exportações de bens primários. Esta dependência ocorreria porque sem aumentos continuados dos termos de troca a valorização cambial adicional necessária para atender à demanda interna elevaria os déficits externos a níveis preocupantes. Déficits da ordem de 4% do PIB ou mais reforçariam a vulnerabilidade externa, pois tornariam o país mais sujeito a paradas súbitas nos fluxos de capitais.

A alternativa mais desejável é realizar um ajuste fiscal de longo prazo, que teria impacto relevante para aumentar a taxa de poupança interna e reduzir o dilema atual da necessidade de sempre se contar com poupança externa para aumentar o investimento. Em paralelo, um esforço de desoneração tributária, concentrada em impostos cumulativos, especialmente os incidentes sobre o faturamento corporativo, poderia ter impacto relevante na formação de poupança privada, que poderia responder mais diretamente ao aumento do investimento e da renda interna. Além disso, um esforço sério e coordenado de desindexação financeira, incluindo mudanças graduais, porém contínuas, nos mecanismos de operação do mercado de financiamento da dívida pública e na estrutura regulatória do mercado financeiro, bem como a redução progressiva da indexação de preços à inflação passada, reforçariam a eficácia da política monetária. O resultado seriam juros mais baixos, em um contexto de câmbio mais depreciado e inflação sob controle no médio e longo prazo. É um caminho mais difícil que a simples tolerância ao processo continuado de valorização do câmbio, pois demanda visão estratégica clara e execução eficiente e cuidadosa, mas é a melhor alternativa para romper de forma consistente com as amarras que impedem a aceleração do crescimento econômico.

PAULO PEREIRA MIGUEL, diretor de pesquisa econômica da Quest Investimentos, é mestre em economia pela FEA-USP e em administração de empresas pelo insead.


Comentário
É pena que, ao longo do tempo, nas diversas vezes em que o governo fez uma maior economia, um maior superávit primário em suas contas, cortando drasticamente investimentos e gastos com custeio (saúde, segurança, etc.), os juros não caíram. Aí, ficamos no pior dos mundos: nos privando de tudo para sequer conseguir pagar os juros da dívida. Ou seja, padecendo para enxugar gelo.
Parece que o BC do governo Dilma vem tentando alterar este quadro - não à toa, para mim, é o melhor setor do governo, enquanto que no governo Lula era um dos piores.
Coisa que discordo ou que não ficou clara em seu texto, é quanto à incidência de tributos. Só reduzi-los com relação ao faturamento não basta. Carece direcioná-los ao mercado financeiro, e a quem pouco produz. A necessidade do retorno da CPMF é um exemplo claro neste sentido.

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