sábado, 29 de novembro de 2008

Lula, Mídia e Opinião Pública: Amor e Ódio - Blog do Nassif

A retórica violenta do colunista da Folha Vinícius Torres Freire contra Lula (e o que ele chama de lulismo) em seu blog é exemplo de um fenômeno que deve ser discutido acima das questões partidárias e ideológicas.

Personagens como Lula, mas também como Getúlio, Lacerda, e outros tantos líderes políticos no mundo, costumam atrair um debate muitas vezes destemperado.

E digo que o debate é destemperado nas duas frentes, visto que, na maioria das vezes, as opções se regem pelo amor e pelo ódio.

Seria reducionismo puro atribuir as marretadas retóricas de autores como Arnaldo Jabor, Vinícius Torres, Clovis Rossi, simplesmente a um preconceito social, motivado pela origem do presidente.

Não são somente líderes populares (embora estes em maior número) que arregimentam sentimentos tão extremos em torno de si. Amor cego. Ódio surdo.

Hipóteses

Vou tentar, aqui, com muito zelo pelo apartidarismo proposto pelo jornalista Luis Nassif para esta comunidade, levantar hipóteses que expliquem a violência desse discurso anti-lulista.

Hipótese 1

"As retóricas violentas anti-líderes estão na proporção inversa do carisma que estes mesmos líderes dispõem junto a amplos setores da sociedade (a que possivelmente estará sujeito Barack Obama, nos EUA, pelo seu enorme carisma junto a latinos, negros, pobres e jovens)".

Em outras palavras: "grupos sociais que não se sentem representados pelos líderes cortejados por outros grupos desenvolvem necessariamente ressentimentos no nível imaginário. Quanto mais paixão "positiva" estes líderes despertarem num lado, mais paixões negativas, eles despertarão no outro".

Hipótese 2
Talvez esse sentimento de desprezo e ódio possa explicado não somente pela relação dos grupos sociais, mas pela relação dos discursos representados ou rechaçados por estes líderes.

Isto porque nem sempre há coincidência entre "discurso" e grupo social (nem toda mulher é feminista, nem toda elite é anti-popular, por exemplo.)

O caso do colunista da Folha é muito exemplar: ele fora editor de ciência e educação; portanto, duas editorias que aparentemente são responsáveis pelos debates mais racionalizados no jornalismo.

As expressões "chefe de quadrilha", muito utilizada por Arnaldo Jabor para definir o presidente Lula, e "canalha", usado metonimicamente para definir o seu governo, por Clóvis Rossi, são suaves em termos de agressividade, quando são comparadas àquelas utilizadas pelo ex-editor de educação e de ciência da Folha.

Já de antemão alerto que não comparo em nenhum momento os posts de Vinícius Torres com os chamados blogs de difamação.

Também não há, abaixo, qualquer argumento que leve em consideração questões ideológico-partidárias.

Vinícius é jornalista e tem condições intelectuais de manter um post de debate racionalizado. Mas, ao tratar de Lula, o colunista muda rapidamente seu estilo.

Vamos tomar como exemplo um post recente, que acabou levando o jornalista a um verdadeiro bate-boca com lulistas, não menos agressivos, que responderam com paixão simétrica ao argumento de Vinícius de que Lula fora racista em certa fala pública.

"O primitivismo de Lula" e a retórica do desprezo


O racismo de Lula (25/11/2008)

"Lula, o boquirroto incontrolável, temperou sua logorréia com racismo num discurso de ontem"


Esta é a primeira frase do post: a acusação é de racismo simplesmente, independente dos termos pejorativos anteriores.

A revolta do colunista tem a ver com um discurso muitíssimo comum no país, de exaltação da mestiçagem, da "mistura de raça", e de povos. Esta filiação discursiva motivou músicas, romances, poemas e filmes, debates e opiniões, muitas vezes sustentadas por notáveis, e que nunca soou aos brasileiros como uma opinião perigosa e preconceituosa: segundo esse discurso, "o brasileiro é mais criativo, porque mais heterogêneo". Está presente em diversas fases do modernismo e retorna fortemente na própria Tropicália.

Curiosamente, o colunista não identificou a enorme tradição deste pensamento: ele atribuiu a Lula um racismo grave:

Diz, Lula.

"Por que o brasileiro tem mais criatividade? Esta mistura do europeu, índio, negro, sabe, permitiu que nascesse um povo mais criativo, mais esperto do que a média, daqueles que são tudo assim, tudo a mesma coisa...".

Sobre esta fala, vem um comentário veemente e furioso:

"Pois é. Os japoneses, que estão entre os povos mais 'tudo assim, tudo a mesma coisa', devem ser menos criativos. Os alemães também. Assim como os chineses han, várias nações africanas, índios isolados etc, devem, pois, ser menos criativos do que os brasileiros e, também, que os americanos, segundo a ciência de Lula..


O modo de atribuir esta discurso a uma "ciência do Lula" apaga o fato de que é longa a tradição de atribuir a esta mistura de povos uma certa superioridade criativa.

A questão poderia ser discutida da seguinte forma: este pensamento é tão ingênuo quanto o seu contrário, o da superioridade de povos não miscigenados.

Mas seguem os ataques:

"Os americanos, apesar de suas discriminações negativas, misturaram italianos, judeus, alemães, irlandeses, suecos, gregos, ingleses, mexicanos, porto-riquenhos etc etc. Aliás, afora esses exemplos, sendo o brasileiro o mais "exemplar", a humanidade, segundo Lula, nunca se misturou desde o início dos tempos. Ou valem apenas misturas recentes?"


A fala de Lula é nacionalista sem dúvida, mas não há nenhuma referência a outros povos heterogêneos.

Recentemente, Obama disse que o "povo americano nasceu para seguir em frente, e precisa retomar a caminhada". Curiosamene, a fala foi uma das mais aplaudidas pela imprensa opinativa.

Talvez algum jornalista tenha se incomodado, dizendo que Obama "não devesse ter desprezado outros povos que também nasceram para caminhar para frente". Mas acho pouco provável que um gesto de elogio à nação americana seria interpretado de maneira tão negativa em solo pátrio.

Segue Vinícius:

"Criatividade, aliás, tem tudo a ver com "raça", esse conceito tão "científico", é claro, nos diz o Gobineau do racismo criativo _Lula".


Aqui Lula é comparado a Gobineau e ao racismo científico do século XIX: que, no entanto, caminhava numa outra direção, a da hierarquia das "capacidades raciais", ao que se seguiu o discurso dos perigos da miscigenação, vista naturalmente como degeneração física, moral e intelectual das "raças" superiores.

O discurso da mestiçagem como "ganho" e não como "perda" foi uma reação ao racismo do século XIX. Nasceu ali pelos anos 30 e teve em Gilberto Freire um bom ponto de apoio.

Sabemos que não há ganhos "raciais" nas mestiçagens. Sabemos da pouca propriedade "científica" de uma crença como esta. Mas talvez não se possa dizer que aqueles que acreditam que "a heterogeidade da formação cultural" do Brasil seja um motivo de orgulho são "racistas". Esta é uma expressão forte, pouco condizente com o que vemos e ouvimos neste discurso do elogio às nossas misturas, um xingamento.

Mas não vamos discutir os méritos, apenas os encadeamentos argumentativos do colunista, apontando com que discursos ele dialoga.

Silenciamento e poder


Num certo momento, Vinícius defende que Lula seja impedido (ou se impeça) de falar para crianças no Brasil:

"Lula talvez devesse se impedir de falar diante de crianças e jovens, ao menos".


Isto é recorrente nas retóricas de ódio a Lula: a vontade de que ele não fale. De que ele seja silenciado e não se pronuncie. Mas aí deve-se perguntar 1) o que seria silenciado se Lula fosse calado? 2) Quem seria silenciado se Lula fosse calado?

Vamos tentar ir à frente das respostas mais comuns a estas perguntas (tanto de um lado como de outro do espectro político-partidário).

Observe que, na passagem seguinte, o contra-argumento não é simétrico ao argumento do sujeito a ser criticado:

"Em 2004, discursando para crianças disse que ler é como começar a fazer exercícios: "dá uma preguiça ‘desgramada’". Um trecho de coluna deste blogueiro a respeito, também de 2004:


"Para as crianças, ler é tão desanimador como as caminhadas para os adultos sedentários: "dá uma preguiça 'desgramada'", disse o presidente Lula da Silva ao inaugurar a Bienal do Livro de São Paulo
".


Não vamos entrar no mérito da questão, novamente, visto que sabemos perfeitamente que temos em sala de aula muita resistência à leitura por parte dos nossos jovens - curiosamente uma resistência própria a uma sociedade midiática audiovisual, que se impôs no decorrer da passagem, no Brasil, de uma cultura marcada pela oralidade para a escrita.

Esta questão é muita debatida nos meios educacionais e o jornalista que transita pela editoria de educação deveria conhecer este debate.

Mas esta "constatação" feita por Lula transforma-se em "pregação da preguiça de ler".

Não é preciso debater à condenação lingüística, expressa pelas aspas, ao termo "desgramado", que é palavra de uso corrente fora da chamada "norma culta". Mas sem dúvida esta "condenação entre aspas" é a materialização de uma repulsa aos falares populares, a sua sintaxe, e ao seu léxico.

Segue o post:

"Lula não lê mais de duas páginas de relatórios, dizem assessores, gosta de piscina, churrasquinho, pelada e música sertaneja, samba, suor e cerveja. Não deixa, pois, de ter razão o realismo pedestre de Lula sobre a leitura. Preconceito? Não é o caso".


Observe os elementos mobilizados para dizer que Lula é um "homem ignorante" e que deveria ser impedido de falar aos jovens: "o presidente gosta de festa, futebol, música (a especificidade "música sertaneja" que aqui aparece para afirmar que "Lula não ouve música culta"), samba, suor e bebida.

A expressão "samba, suor e bebida" não é casual: tem a ver com o imaginário sobre "diversão de pobre". O samba (ao lado da música sertaneja, como expressões culturais menores), o suor, remetendo à pouca ascese dos corpos, que seria mais apropriada às high cult, e cerveja, como índice de um consumo pouco sofisticado.

A idéia de que pessoas que tenham "gostos populares" sejam ignorantes e incapazes reaparece na coluna, mas pertence também a um discurso muito antigo, que chegou a fazer parte inclusive dos ideólogos de esquerda: o de um povo alienado e inconsciente da seu potencial. A diferença é que, para o colunista, "isto" não tem potencial algum.

Corporeidade e civilização

Seguimos:

"O presidente não é deus, como alertou, mas gosta de ser a voz do povo, um megafone de hábitos, trejeitos, preconceitos, utopias e até sabedorias populares. Tanto faz, a princípio, que Lula seja assim".

É curioso como a corporeidade de Lula incomoda o colunista: os trejeitos (assim como o suor) são expressão de uma identificação com um tipo de pensamento (selvagem?) que se baseia sobre "preconceitos, utopias e até (observe o conectivo que orienta o argumento para a noção de esforço) sabedorias populares".

Os trejeitos de Lula, sua pouca memória corporal nos "dizeres gestuais" contidos, disciplinados, daquele que pertence à filiação cultural européia, traz incômodos, parecem selvagens, pouco educados.

O corpo de Lula não seria ideal para o poder. O corpo do poder é um corpo que deve remeter ao corpo "disciplinado", ereto, com gestual contido, sugerindo racionalidade.

Mas o argumento deve ser complementado com o vem a seguir, que revela a oposição fundante deste raciocínio: pensamento selvagem x razão civilizacional.

"O problema é que ele não consegue transcender seu realismo pedestre a fim de desempenhar o papel público de presidente, de transmitir uma visão mais racional e elaborada sobre as questões públicas".


O mais surpreendente no discurso - muito antigo, aliás, e que remete à debilidade das massas, do homem comum - com que Vinícius se identifica e se reconhece de forma bastante enfática, é o emocionalismo presente em sua fala/escrita.

Expressa-se sobre uma poética da condenação do que, no seu imaginário, é o povo, o selvagem, e o primitivo.

Neste "evolucionismo social", há etapas que Lula não consegue transcender. Lula não chegou, para este discurso, ao patamar civilizacional esperado daquele que ocupa a cadeira da presidência.

Seguem os argumentos de depreciação do presidente:

"Limita-se às metáforas chãs, tem amor pelas mezinhas, pelas alegorias da vida de peão, sobre o companheiro que leva bronca da patroa por ter parado no botequim para a cervejinha".


A vida comum é deplorada. Lula é pecaminoso porque dá corpo cotidiano às grandes questões (Permitam-me um digressão: "Mas o que seriam as grandes questões? Em outras palavras: "a grande questão fim do neoliberalismo não tem a ver com o cotidiano chão de pessoas que perderam o teto?")

A expressão mais violenta e forte vem agora:

"Esse bestiário da vida operária não dá conta do debate democrático, o metaforismo popular não é capaz de traduzir questões de governo para o povo pobre. É apenas demagogia, talvez não intencional: Lula é o que parece ser. Transmite seus preconceitos sem pejo ou mesmo consciência do que faz, como no caso da gafe sobre a leitura e tantas outras."


Insiste o blog-jornalista na tal gafe sobre a leitura, atribuindo por fim a Lula uma "inconsciência sobre sua incapacidade".

Curiosamente, os argumentos são pré-levistraussianos, que atribui a inconsciência cultural em relação às estruturas determinantes a todos os grupos humanos.

O esforço aqui é o de mostrar que, além da questão partidária, tão evocada nas discussões do jornalismo, pode-se compreender o posicionamento dos sujeitos a partir de suas filiações discursivas, suas identificações ideológicas a pensamentos, na maioria das vezes bem tradicionais. Pode-se entender também como, na luta dos discursos, se justificam os afetos, como o amor, a paixão e o ódio.

Nenhum comentário: