terça-feira, 3 de junho de 2008

Vamos olhar para o Sul - por Antonio L. M. C. da Costa (Cartacapital)

Na sexta-feira 23 de maio, Lula, Hugo Chávez, Evo Morales e Rafael Correa atrasaram em uma hora a formalização do tratado constitutivo que deu partida à União de Nações Sul-Americanas (Unasul), ao prolongar o café da manhã conjunto. Possivelmente, o tema era a desistência do nome indicado para secretário-geral, o ex-presidente equatoriano Rodrigo Borja. Sua substituição não é tão simples, já que o cargo é reservado a ex-presidentes.

Admirador de Simón Bolívar, Borja se disse inconformado com a persistência do Mercosul e da Comunidade Andina, que, a seu ver, reduzem a organização a mais um fórum, dos quais já há muitos. Gostou ainda menos do conselho de 12 delegados que terá parte das atribuições executivas que ele desejaria ter à disposição, permitindo-lhe reagir com rapidez às eventuais crises.

Mas não foi por tomar as dores de Borja e apoiar seu sonho apressado e ambicioso de unidade que grande parte da imprensa brasileira cobriu a fundação da Unasul com um soberano torcer de narizes. Trata-se do mesmo desprezo que acompanhou todas as iniciativas que, como o Mercosul e o G-20, a obrigam a se lembrar de que o Brasil é um país periférico e latino-americano. Deve ser artefato retórico destinado ao fiasco, por definição, tudo que não atenda aos interesses dos EUA e dos países ricos e não alimente a ilusão da elite brasileira de pertencer a eles.

O futuro da organização pode inspirar todos os tipos de dúvidas e questionamentos, mas é curioso ver cobrar de uma organização recém-nascida uma integração econômica que a Europa levou mais de 50 anos para construir e uma unidade política que, até hoje, não alcançou. Não há nada de ilógico na sua coexistência com blocos regionais, assim como o Benelux coexiste com a União Européia desde seus primórdios.

Não é tão razoável quanto parece cobrar que os blocos regionais – objeto do mesmo ceticismo desde seus primeiros momentos – resolvam todas as suas divergências internas antes de se pensar em uma organização mais ampla. A Comunidade Andina e o Mercosul não são unidades estanques e a integração energética, econômica e viária entre os dois grupos é tão indispensável quanto dentro deles. Nem a Venezuela, nem a Bolívia, nem o Brasil, nem o Chile podem se dar ao luxo de virar as costas a qualquer um dos dois grupos. Governos são passageiros, assim como seus desentendimentos, mas a vizinhança é permanente e a necessidade mútua é crescente.

Além disso, do ponto de vista político, uma comunidade de 12 integrantes – todos os países independentes da América do Sul – pode ter um grau de flexibilidade, equilíbrio e dinâmica interna que não é possível em um grupo de quatro ou cinco, principalmente se dentro destes um ou dois países monopolizam as decisões práticas por seu peso econômico. É a eterna queixa do Paraguai e do Uruguai em relação a Brasil e Argentina, que fora de uma comunidade mais ampla não tem solução realista.

Mais importante e urgente, uma maioria substancial dentro de uma união subcontinental de 12 países pode reunir peso e legitimidade para mediar conflitos políticos e internacionais e persuadir governos e oposições agressivas, coisa impraticável tanto para pequenos blocos regionais quanto para uma organização assimétrica como a Organização dos Estados Americanos (OEA), desequilibrada pela presença de uma superpotência militar indisposta a acatar maiorias ou mesmo a lei internacional.

Mesmo uma organização como a União Africana, com menos de seis anos, mostra ter valor em tais situações. Mesmo sem superar todos os conflitos entre países africanos, para não falar daqueles que os dividem internamente, a intervenção de tropas coordenadas pela UA, ainda que insuficiente, já salvou vidas no Sudão e no Burundi e, em março deste ano, derrotou o golpe separatista que quis tornar independente a ilha de Anjuan da União das Comoras.

A mediação política da organização africana pressionou com sucesso dois governos golpistas a celebrar eleições, teve um papel importante em conter, ou pelo menos adiar, a incipiente guerra civil no Quênia e é a esperança de solução pacífica da crise no Zimbábue. Mesmo a UA estando alicerçada em processos de integração política e econômica bem mais precários que os sul-americanos e coexistindo com nada menos que cinco blocos regionais formais, cada um deles também longe de superar suas disputas políticas internas ou atingir uma verdadeira integração econômica.

Essa é a perspectiva que deu urgência à formalização de uma organização semelhante na América do Sul: a existência de tensões para as quais se quer debater e legitimar soluções sem intervenções externas. Não deve ser tão difícil. Ao contrário do que afirmam tantos editoriais mal-humorados, as brechas entre os países sul-americanos têm se estreitado mais do que se alargado. Com a vitória de Fernando Lugo no Paraguai, ampliou-se ainda mais a amplitude da maioria de governos de centro e esquerda que compartilham, entre outros interesses, o da autonomia regional.

Com a exceção, por certo, da Colômbia, que, por ter os EUA por trás, parece ter ganhado aos olhos da imprensa conservadora um peso maior que o de todo o resto da América do Sul. Esta, ao ver dos jornais, não deveria ter outro objetivo que poupar alguns trocados a Washington, ajudando Uribe a esmagar o “narcoterrorismo” e, de quebra, os movimentos sociais e camponeses de seu país. Como se o problema do continente, o obstáculo à sua integração e o responsável pelas redes de narcotráfico que envolvem elites de todo o planeta fossem um grupo guerrilheiro acuado e desesperado.

Bogotá não tem interesse em enfraquecer a sua relação com Washington – pelo contrário, seu interesse é esvaziar a Unasul e aferrar-se à OEA, onde os EUA são a voz dominante e disposta a defender seu “direito” de realizar operações unilaterais em países vizinhos quando e onde desejar. Que a Colômbia tenha emperrado a criação do Conselho de Defesa, proposto pelo Brasil, ao exigir que todos os seus integrantes classifiquem as Farc como “terroristas” não é de se admirar. É de se assinalar, antes, que tenha ficado sozinha nessa postura.

Ainda durante a manhã, o ministro da Defesa brasileiro, Nelson Jobim, que há meses negociava o acordo militar com os vizinhos e, diplomaticamente, recusava a proposta de participação dos EUA, dizia querer criar o conselho com ou sem a Colômbia, mas, ao longo das horas, para evitar uma ruptura explícita no ato da fundação da Unasul, recuou e aceitou a proposta do Chile de estudar a questão por 90 dias.

Para, provavelmente, decidir prosseguir sem Bogotá, que não mudará de posição. Como assinalou, sorridente, o equatoriano Rafael Correa, “mais tarde podem se integrar os países que talvez tenham mais resistências”. Com a Colômbia de fora, o Conselho de Defesa terá uma influência limitada sobre o seu governo, no caso de novo atrito com os vizinhos. Mas Álvaro Uribe saberá que está isolado e terá de se conter.

O jornal Valor chamou o Conselho de “delírio burocrático” porque “a ameaça maior é a de um choque entre países vizinhos” e falta “inimigo externo a combater”. Mas foram exatamente os enfrentamentos entre Colômbia, Venezuela e Equador que deram força à idéia e lhe permitiram decolar com rapidez. De resto, seria igualmente difícil precisar hoje o nome de um inimigo externo comum para a União Africana, a União da Europa Ocidental (braço militar da UE), o Conselho de Segurança da ONU, ou mesmo da Otan.

Se, de início, o Conselho de Defesa parece pouco mais que um fórum, é exatamente essa a necessidade mais premente. Seu sucesso ou fracasso dependerá, em primeiro lugar, da disposição de seus integrantes de respeitá-lo como fórum de resolução de conflitos e respaldar suas decisões. Se também se mostrar capaz de ajudar zonas afetadas por desastres naturais e coordenar envio de tropas a missões de paz, como deseja Jobim – nada mais do que os africanos já sabem fazer –, tanto melhor.

Conflitos nas fronteiras da Colômbia não são os únicos problemas difíceis de tratar no âmbito de blocos regionais e que uma organização como a Unasul pode ajudar a resolver. Há de mediar desentendimentos entre Uruguai e Argentina pelas papeleiras, as divergências entre produtores e consumidores sobre preços de gás e energia (inclusive, entre Paraguai e Brasil), debater projetos de desenvolvimento continentais e compatibilizar, construir e proteger redes de transporte e redes de distribuição de gás e energia por todo o continente (a começar pelo venezuelano Gasoduto do Sul).

Mas, se há uma emergência pronta para testar a Unasul e que, de fato, é uma ameaça séria e iminente à estabilidade e à democracia do continente, não é nenhuma destas e muito menos a decadente guerrilha colombiana, mas o renovado risco de guerra civil na Bolívia.

No domingo seguinte à cerimônia em Brasília, Evo Morales deveria comparecer a um ato público em Sucre, para a tradicional comemoração do “primeiro grito libertário” na América do Sul. Foi nessa cidade, em 25 de maio de 1809, que estudantes da Universidade São Francisco Xavier se rebelaram contra o governo espanhol no primeiro dos atos de rebeldia que levaram à libertação do continente, mais de um ano antes de Bolívar iniciar a sua epopéia.

Durante a noite de sexta-feira, porém, a prefeita, o reitor e outras lideranças da elite branca de Sucre decidiram proibir a entrada do presidente na “sua” cidade. Um grupo numeroso, principalmente de estudantes, armou uma vigília em torno do estádio onde deveria se realizar o evento. Na manhã seguinte, grupos indígenas chegaram das zonas rurais para protestar contra o bloqueio e deu-se um primeiro enfrentamento, apartado por soldados.

Para evitar violências piores, Evo Morales cancelou o evento e mandou retirar as forças militares e policiais, mas o recuo acabou por mostrar-se um erro. Entusiasmados pela vitória fácil, grupos de estudantes – sim, da mesma Universidade da qual partiu, há 199 anos, o “grito libertário” – puseram à mostra todo o seu ódio racista e suas propensões fascistas.

Atacaram os indígenas que se retiravam, tomaram 50 reféns entre os prefeitos e vereadores dos povoados e arrancaram-lhes as roupas indígenas tradicionais para queimá-las em praça pública. Com veículos e alto-falantes da prefeitura, fizeram-nos caminhar seminus por 1 quilômetro e meio, agitando bandeiras separatistas de Sucre e suportando golpes e humilhações, até serem ajoelhados em frente à Casa da Liberdade na praça principal – salão que pertenceu à universidade, onde foi proclamada a Independência – e gritar lemas autonomistas e contra Morales, além de implorar perdão pelos supostos agravos à cidade. Tudo sob o aplauso da elite urbana branca e a omissão das tevês, que se limitaram a noticiar o cancelamento da viagem presidencial.

Nada a dever à Noite de Cristal e demais atrocidades cometidas pelos camisas-pardas contra os judeus. Não passou despercebido à ONU, cujo Alto Comissariado para Direitos Humanos condenou esse atentado aos direitos humanos com “tons de discriminação racial”. Não se poderia pedir sinal mais óbvio da necessidade urgente de uma organização como a Unasul. Se estará à altura de intervir em favor da democracia e unidade da Bolívia, veremos, mas é seu o dever de tentar, ao menos, imitar a irmã africana.

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