sexta-feira, 4 de abril de 2008

O dossiê virou complô - por Cynara Menezes (Cartacapital)

A oposição ainda espumava em direção ao Palácio do Planalto, mas até o final da semana um único nome tinha vindo à tona como responsável pelo vazamento de informações sigilosas, no caso do suposto dossiê que o governo teria preparado para ameaçar a oposição na CPI dos Cartões Corporativos. O nome é de um tucano, o senador Álvaro Dias, do Paraná, que admitiu ter sido uma das fontes de informação da revista Veja, na reportagem divulgada em 26 de março, na qual o governo Lula era acusado de “chantagear” o PSDB com uma compilação de gastos do primeiro escalão do governo FHC.

O cenário que se descortinava, ao contrário de um dossiê governista, era o de um complô montado pelos oposicionistas para atingir a pré-candidata de Lula à Presidência, a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff. Um complô no qual estavam não somente políticos, como a mídia em peso.

A mistura entre política rasteira e mau jornalismo resultou numa trama rocambolesca, em que várias perguntas ficaram no ar, sem respostas convincentes. Quem ou quais foram os autores, dentro do governo, da tal chantagem? A revista que publicou a denúncia não deu nomes. Muito menos seu informante, o senador tucano.

Existe relação entre a ministra e o vazamento das informações? A Folha de S.Paulo de sexta-feira 28 de março afirmou em manchete que o braço direito de Dilma, Erenice Guerra, secretária-executiva da Casa Civil, teria sido a responsável pelo suposto dossiê, mas não apresentou nenhuma prova contra a funcionária. E, por último, o mais relevante: quem pinçou as informações sobre os gastos de Fernando Henrique Cardoso e de sua mulher, dona Ruth, do banco de dados da Casa Civil? Ou seja, se existe um dossiê, quem o fabricou?

Os próprios petistas, conhecedores dos embates internos de sua legenda, não descartavam a possibilidade de “fogo amigo”. Alguém do partido interessado em empanar a candidatura da ministra. Diante da confissão do envolvimento do senador tucano Álvaro Dias no episódio, essa versão perdeu força, ao mesmo tempo que uma segunda hipótese ganhava terreno: a de que existe um espião da oposição dentro do Palácio do Planalto, pronto a prestar auxílio aos inimigos.

“Está claro o objetivo de atingir a ministra. O que a princípio parecia ser um vazamento de informações, está se configurando como espionagem”, afirma o líder do governo no Senado, Romero Jucá (PMDB-RR). “Vejo três vítimas do tal dossiê até agora: o governo como um todo, a ministra Dilma e o casal Fernando Henrique e Ruth Cardoso. O PSDB vazou informações sem se preocupar em nenhum momento em resguardar o ex-presidente e sua mulher, como se qualquer meio valesse a pena para atingir a ministra Dilma.”

Na quinta-feira 3, Jucá tentava reverter a derrota sofrida para a oposição, que conseguiu aprovar a convocação da titular da Casa Civil para depor na Comissão Permanente de Infra-Estrutura do Senado. Será a oportunidade que a oposição tanto buscava para manter de pé o assunto. Antes disso, tucanos e demos haviam sido derrotados em suas tentativas de convocar a ministra na CPI Mista dos Cartões Corporativos.

No corredor da ala das comissões, o líder do PSDB, Arthur Virgílio, fazia a festa com a vinda da ministra. “Vou perguntar o que quiser, até mesmo onde ela comprou o vestido que porventura estiver usando. Nada me impede”, provocou o senador.

Enquanto isso, na reunião da CPI, o embate entre governistas e oposicionistas pegava fogo. Álvaro Dias era colocado contra a parede por parlamentares que exigiam explicações sobre sua real participação no episódio. “O senador foi o atravessador de um produto criminoso”, acusou a deputada Perpétua Almeida (PCdoB-AC). Um dos mais agressivos, o deputado Silvio Costa, do PMN de Pernambuco, chegou a insinuar que Dias se tornara “o Cabo Anselmo da CPI”, em referência ao famoso agente duplo e delator de guerrilheiros na época da ditadura militar. A

lvo de especulações da mídia durante as últimas duas semanas, a existência do dossiê sempre foi negada pelo governo, que também apontava desde o princípio, nos bastidores, para a possibilidade de terem sido os próprios tucanos os autores do documento. Mesmo porque, durante a semana, foi revelado na CPI que o senador Arthur Virgílio sabia da existência de um banco de dados sobre os cartões corporativos na Casa Civil desde 2005, quando fez um requerimento pedindo informações sobre os gastos de dois ocupantes da pasta durante o governo Fernando Henrique, Clóvis Carvalho e Pedro Parente, que chefiaram a Casa Civil no período.

Curiosamente, os jornalistas que acompanharam de perto a cobertura do caso não cuidaram de averiguar se poderia haver alguma ligação com os tucanos. Não seria algo descabido, longe disso. O suposto dossiê, em última instância, prejudicaria muito mais o governo do que a oposição.

A versão que ameaçou colocar o governo contra as cordas veio abaixo quando o blog do jornalista Ricardo Noblat divulgou, na quarta-feira 2, o envolvimento do senador. Noblat veiculou a íntegra do pseudodossiê, contendo 12 páginas, onde aparecem despesas diversas do alto escalão do governo Fernando Henrique, incluindo itens como aluguel de carros, compra de bebidas, de frutos do mar e até de artigos exóticos como unhas postiças e fechos para sutiã. Miudezas similares às que apareceram no escândalo dos cartões corporativos do governo Lula, revelado em janeiro. Esmiuçando a relação de gastos, é possível ao cidadão comum ter uma idéia dos hábitos dos governantes: os tucanos, por exemplo, pelo visto não metiam a mão nos próprios bolsos para nada, nem mesmo ao comprar ingressos para o cinema e o jardim zoológico. Mais uma vez, quem teve de se explicar foram, porém, os integrantes do atual governo, não do anterior.

Antes que a oportunidade fosse perdida, o senador José Agripino (RN), líder dos Democratas, esticou até onde pôde sua retórica. No dia anterior, declarara em plenário não estar interessado “no vôo do papel, mas no que está escrito”. Acrescentou que “não interessa quem vazou, mas quem fez”. E sugeriu a Noblat que revelasse quem lhe repassou o relatório. O jornalista se recusou.

Um dos poucos a questionar o papel da imprensa no episódio do suposto dossiê foi o ombudsman da Folha, Mário Magalhães, que, na crítica interna de segunda-feira 31, apontou diversas falhas na apuração feita pelo próprio diário. Sob o título “Um dossiê e muitas incertezas”, Magalhães listava suas dúvidas, a primeira delas a falta de provas contra Erenice Guerra, a secretária da Casa Civil apontada pelo próprio jornal como criadora do dossiê. A oposição não conseguiu convocar a funcionária a depor na CPI.

Faltou dizer que, como secretária-executiva da Casa Civil, caberia a ela organizar o banco de dados cuja existência foi confirmada por mais de um integrante do governo, inclusive a ministra Dilma. O ombudsman também questionava os repórteres do jornal por terem escrito, sem comprovação, que houve uma reunião na Casa Civil para criar uma “força-tarefa encarregada de desarquivar documentos referentes aos gastos do governo anterior a partir da rubrica suprimento de fundos, que incluiu cartões corporativos e contas ‘tipo B’”. Houve, inclusive, nota oficial negando que tal reunião tivesse acontecido. E perguntou: como um dossiê tão fajuto, que não continha nada de fato comprometedor, poderia ser utilizado contra os tucanos? “Quem tinha muito a perder, por rigorosamente nada em troca, seria a ministra da Casa Civil”, escreveu Magalhães. Fez uso de um raciocínio elementar que parece ter sido deixado de lado pela mídia nativa.

Ganhador, entre outros, dos prêmios Esso, da Sociedade Interamericana de Imprensa e do Vladimir Herzog, Magalhães fez, como se costuma dizer no jargão jornalístico, o dever de casa. Apontou lacunas na cobertura do assunto mais comentado do momento, seu dever como crítico do jornal onde trabalha. Foi o que bastou para que um dos cérberos da oposição eletrônica o acusasse de “alinhamento ideológico” com o governo Lula. Em entrevista no Palácio do Planalto, Lula afirmou que a ministra da Casa Civil fora vítima de “chantagem política”. E atacou os criadores do suposto dossiê. “Alguém encontrou um osso de galinha e tentou vender para a imprensa que tinha encontrado uma ossada de dinossauro. Na hora que foi montar para saber o tamanho do dinossauro, percebeu que era um franguinho”, ironizou o presidente.

O primeiro caminhão trazendo 75 caixas de documentos requisitados pela CPI com os gastos feitos por integrantes dos governos FHC e Lula com cartões corporativos e contas do tipo B já chegou ao Congresso. Mas as investigações sobre o autor do suposto dossiê ainda continuam. As últimas hipóteses sobre a origem do papelório tiravam da mira o Planalto e tinham como alvo o Tribunal de Contas da União (TCU). Por ter acesso aos dados sigilosos, um técnico requisitado ao tribunal pelo senador Dias, com o objetivo de auxiliá-lo nas investigações da CPI das ONGs, era apontado como o principal suspeito de ter coletado as informações. Por ora, são apenas especulações. E especulação não é notícia.

Fato é que a CPI dos Cartões Corporativos, convocada inicialmente para investigar os gastos do governo Lula, está deixando os tucanos em polvorosa, por estar cada vez mais voltada para as contas do período FHC. “O feitiço virou contra o feiticeiro. A grande auditoria que será feita pela CPI é a do governo Fernando Henrique. Até porque o que tinha de sair sobre os integrantes do governo Lula já saiu. Por isso eles insistem tanto em abrir os dados sigilosos da Presidência”, explica um dos membros da comissão, o deputado Paulo Teixeira (PT-SP).

A prova da insatisfação da oposição ficou flagrante na atitude tomada pelos líderes Virgílio e Agripino. Ambos exigiram a instalação de outra CPI exclusiva do Senado. Onde, possivelmente, poderão investigar somente o que lhes convém.

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